Tenho uma das
mais extensas coleções do mundo. É também uma das mais extravagantes: minha
coleção de vícios. Provavelmente o maior deles seja o de ler.
É, porém,um vício democrático. Clássicos, poesia, filosofia, ficção, underground,
quadrinhos, bula de remédio, letras miúdas de anúncio. Que fique registrado que
renuncio enfaticamente à auto ajuda.
Não podia ser
diferente. Boa parte dos vícios é genético. Sou filho de “pais leitores”. Minha
mãe é uma leitora habitual. Sempre anda com uma pilha de livros e até hoje é
cena comum vê-la dormir com um livro nas mãos, quando não borda até os dedos se
perderem nos emaranhados de linhas. Meu pai era um leitor cujo gosto me
influencia até hoje. Lovecraft, Poe, Tex, Zagor, Conan Doyle. Por uma estranha
ironia, um dos primeiros livros que lembro ter lido com meu pai foi “A queda da
Casa de Usher”, em que o arco principal da história gira em torno de uma
maldição sanguínea que leva a família à loucura. No nosso caso, ao vício.
Como um
viciado, também posso atribuir meu problema à minha infância tumultuada ou
mesmo à adolescência difícil. Os castigos da minha mãe eram piores que a “palmada
disciplinadora” ou a surra da educação. Não, não apanhava. Meu castigo era ler
livros escolhidos por ela e depois escrever redações. Como uma boa criança
endiabrada, li e escrevi no primeiro terço da minha vida mais do que muitos não
farão na vida inteira. Não suficiente, quando percebeu que o vício já havia me
tomado, fazia uma permuta astuta, como todo traficante o faz: para cada revista
em quadrinhos que ganhava, também tinha de ler um livro à sua escolha. A
consequência disso veio na adolescência, quando eu já trocava a pelada do intervalo
da escola pela biblioteca. Por conta disso, nunca fui apto à desenvolver qualquer afinidade com
futebol, mas de tanto frequentar a biblioteca municipal perto da minha casa, encontrava livros mais rápido que os funcionários e levava pra casa o
dobro de exemplares permitido.
Hoje meu caso
é ainda mais grave. Tenho mais livros do que posso ler, desejo ter mais do que
posso comprar e compro mais do que devia. Sou um viciado confesso e não tenho possibilidade alguma de recuperação.
A medicina desistiria fácil do meu caso.
Minha compulsão
chegou à um ponto em que me relaciono com os livros como se tivessem vida – e tem. Sinto um prazer quase erótico em
deslizar os dedos nas páginas, sentir a textura das páginas, o cheiro. E
não apenas o cheiro dos novos mas também dos velhos. É como se pudesse
inspirar todas as historias que estão nas paginas, mas não em letras. Sentir os
lugares por onde andou, as mãos que passaram ali antes... é como uma
paixão por uma amante exótica vinda de uma conceituada Casa francesa. Me acostumei a
habitar entre livros e eles sempre estão tão perto de mim quanto minhas roupas, minha câmera e meus cigarros. Uma simbiose permanente.
Por causa do
vício, blibliotecas e livrarias são meus lugares favoritos. Já tive
relacionamentos abalados por causa de livrarias. Me perco. Esqueço o tempo, as horas, os compromissos. Me torno egoísta. Me
agrada transitar entre as prateleiras, olhar pra eles, flertar. Passar os olhos pelos títulos, pelas orelhas,
contracapas. A leitura começa à distancia. É preciso fazer apresentações, ganhar
intimidade antes de tocar, antes que um livro se abra pra você. Do contrário é só ato mecânico.
É comer sem degustar. É sexo pago por prazer imediato.
Por essa
compulsão metódica e vício respeitoso, hoje fiquei incomodado ao entrar numa
livraria local. Era um caos. Na mesma prateleira Guimarães
Rosa, Nietzsche, Marian Keyes, Kafka, Como emagrecer sem sofrer e Tratado de
Processo Penal. Era como colocar um grupo de estranhos sem afinidades, sentados
um ao lado do outro e esperar um diálogo. Não consegui. Transitei por três
minutos e desisti. Simplesmente não conseguia raciocinar e nem encontrar
qualquer coisa que me agradasse. Chamei uma das vendedoras e quando perguntei o
motivo daquele método (?), recebi a explicação de que “a organização por editora
e não por assunto facilita para os vendedores”.
Meu lado de
viciado ficou tão inquieto que precisei escrever. Seria possível que não soubessem? ninguém tinha
contado pra eles que você só compra um livro em situações específicas. Na
maioria dos casos se adquire, adota?
Sou um
viciado confesso. Queria que todo o mundo tivesse a chance de fazer a cabeça,
de experimentar uma dose, injetar letras, cheirar páginas e páginas. Esse é um
caminho sem volta. Por favor, use sem moderação.
Nota do autor:
comprar um livro: ato mecânico, funcional de ação limitada e específica, motivada pela necessidade imediata de cumprir os rigores pedagógicos da instituição ou certame, geralmente praticada por mães comprando livros escolares, estudantes em busca de paradidáticos e concurseiros. Recomenda-se ter um coração aberto e incluir outros livros sem a obrigação.
adquirir um livro: ato ocasionado pelo vício, prazer ou paixão instantânea e incontrolável, caracterizada pela troca de valor monetário ela liberdade das letras. Recomenda-se manter longe da poeira, afeto e ausencia de ciúmes.
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