sábado, fevereiro 04, 2012

VÍCIO AMARGO E QUENTE

[...e outros pecados da língua]



Sempre tive métodos nada ortodoxos de avaliar pessoas.
O mais cruel deles é o ritual do café. Convidava com aquele sorriso de navalha para tomar um café – armadilha inclusa. Dependendo da resposta, caía de imediato na bula dos esquecidos, na caixa restrita de pessoas evitáveis.
Condeno a identidade pelo conteúdo do copo. Não nego. Sou um carrasco megalomaníaco, no que diz respeito a bons hábitos ruins. Beber café é a primeira chave do voto de confiança. Os maiores criminosos eram abstêmios do “despertar negro”. Há exceções, claro. Mesmo bandidos podem ter bom gosto, e café é a última cota da arte de permanecer atento.
Passado o primeiro passo, o da afinidade do vício, sigo para o hábito em si. Tomar pouco café é como o que não senta no boteco para o segundo chopp: faz todo o percurso mas se retrai às portas do paraíso. Tomar uma xícara pela manhã e só, não faz de você um monge de olhos abertos. No máximo um coroinha do sagrado rito, que nunca ascenderá à tocador de sino, ou mesmo de Papa da madrugada. Beber muito café – diga-se, ser um devasso da garrafa, o terror da repartição, o chato da empresa e o tormento da copeira – é qualidade de gente inquieta. O café está para a criatividade como o dinheiro para a calcinha da stripper.
Mas não é só beber e beber muito. Tem de beber do jeito certo.
- Café frio é como beijo de anjo na chuva: gelado e sem tesão. Café tem de ser quente. Arrancar aquele suspiro discreto antes do gole, disfarçando pra língua, a brasa sorrateira;
- Café fraco é coisa de gente covarde. É como ir na festa e tomar cocktail sem álcool. É aquele sujeito que usa cinto e suspensórios, porque não tem coragem pro risco de ficar sem calças. Café bom é aquele forte, que fecha um dos olhos do degustador, tamanho estalo que gera no cérebro. Se não causa aquela experiência de Lázaro, arrancado da tumba de volta à vida, não compensa. Soco no palato com suspiro de satisfação. Sensação de ter o cérebro momentaneamente pressionado contra uma bateria de caminhão por um golpe de dois tijolos.
- Café doce é coisa de gente amarga e gananciosa. Que precisa de motivo pra ficar feliz. Que precisa descarregar colheres e colheres que nunca vão dissolver e no fundo da caneca vira aquele rastro grudento e estranho que irrita a dona da casa. Na gastronomia açúcar é o ditador do sabor. Não se toma café doce, se “acrescenta um torrãozinho” pra temperar o cigarro seguinte.
Outro item que convém - talvez seja o mais importante – é a qualidade do pó. Quem economiza no pó do café não pode ser bom marido, bom amante ou bom amigo. É marido que compra pão dormido pela impaciência de esperar os 15 minutos da próxima fornada: o desdém da manhã de sábado. É quem toma banho antes do cigarro no pós-coito. É quem evita 3 minutos de empenho dos ouvidos quando o vizinho sofre. Pó de café tem de ser de boa qualidade, sob pena do ostracismo das visitas de meio de tarde e de um lado da cama vazio na manhã seguinte.
A variação da categoria é o que usa o café solúvel. É o ócio do apressado. A casualidade dos que tem o sono à toa, mas não arriscam. É o fingimento dos semi-acordados, com uma caneca de meio despertar na mão. Nem dormindo, nem acordado: um pedaço de realidade deslocado entre lá e cá.
Sempre tive preconceito, confesso. Mantive um pé atrás com os tomadores de Nescafé durante anos. Conspirava secretamente um pequeno ato de terrorismo que afetasse seu ritual, fosse um tropeço, fosse um seqüestro. Planejava silenciosamente estragar todo o seu quase-trabalho. Seria como impedir um crime grotesco: perfeitamente aceitável pela sociedade.
Mas a língua é um pedaço maldito. A mesma que degusta o bom sabor, faz pagar pelo pecado. Então a conheci... Ela tinha dotes de culinária diplomada e dom pra cozinha [Dentre outros tantos]. E... mania de Nescafé. Fui traído. Primeiro me apaixonei e perdi todos os conceitos e travas de segurança. Só me restaria – em condições normais – a salvaguarda do café. Tarde demais. Quando descobri que ela tinha aquela mania de café solúvel e leite pra começar o dia, já havia me perdido na inevitável condição de desejar acordar todas as manhãs dividindo o armário da minha caneca de café puro com a dela de Nescafé e Leite.
O amor é uma coisa estranha.