segunda-feira, junho 29, 2009

LESTE ÍTACA

"Quando você começar sua viagem para Ítaca, reze então para que a estrada seja longa, cheia de aventura, cheia de sabedoria.
Não tema os Lestrigões e os Ciclopes e o bravo Poseidon.
Você nunca vai encontrá-los em sua trilha se os pensamentos continuarem amplos, se uma fina emoção tocar seu corpo e seu espírito. Você nunca vai encontrar os Lestrigões, os Ciclopes e o feroz Poseidon, se não os carregar consigo em sua alma, se sua alma não os erguer diante de você.
Reze então para que a estrada seja longa. Que as manhãs de verão sejam muitas,Que você entre em portos vistos pela primeira vez com tanto prazer, com tanta alegria.Pare em mercados fenícios e compre finas mercadorias, madrepérolas e corais, âmbar e ébano,e perfumes agradáveis de todos os tipos, compre tantos perfumes agradáveis quanto puder; visite anfitriões de cidades egípcias, para aprender e aprender com aqueles que têm sabedoria.
Sempre tenha Ítaca fixa em sua mente.
Chegar lá é seu último objetivo. Mas não apresse a viagemde jeito nenhum. É melhor deixá-la durar por longos anos; e até mesmo ancorar na ilha quando vocêestiver velho, rico com tudo que tiver conquistado no caminho, sem esperar que Ítaca lhe ofereça riquezas. Ítaca lhe deu a bela viagem. Sem ela você nunca teria tomado a estrada. Mas ela já não tem o que lhe dar.
E, se você achá-la pobre, Ítaca não fraudou você. Com o grande saber conquistado, com tanta experiência, você certamente deverá ter entendido o que Ítacas significam."
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(Konstantinos Kaváfis)
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[Da série: Coisas que eu queria ter escrito.]
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[perambulando em postagens antigas do blog, me deparei com esse texto maravilhoso que me foi deixado pela querida amiga Lilith. Merece uma postagem na página principal com muito louvor]

quinta-feira, junho 25, 2009

PASSEIOS DE QUINTA

Acordei com seu rosnado e o peso de suas patas na minha cama. Antes mesmo de olhar já sabia que era ele. Desvencilhou-se da corrente, das trancas e veio direto pro meu quarto, atirando-se janela a dentro. E eu podia jurar que havia deixado o tinhoso bem trancado no quarto dos fundos...
Discretamente, olhei de canto de olho fingindo dormir. Não adiantou. Logo começou a puxar o cobertor que eu usava pra me esconder – como todos sabem um cobertor quentinho pode protegê-lo de quaisquer males, do mundo ou imaginários, ainda que eles permaneçam lá fora - e nem isso adiantou. Hoje ele veio determinado, e logo começou a me morder os pés com uma insistência insuportável.
Enfim, desisti e levantei. Não há como competir com um bicho tão persistente.
Enquanto troco de roupas ele destrói mais um sapato meu em uma brincadeira furiosa. Apenas observo, me questionando se ele nunca ataca um sapato cujo outro pé já tenha sido destruído por algum senso de moral destorcida; como uma lição, ao vitimar apenas um e deixar o outro como um lembrete de que parte de mim pertence a ele; ou se seria apenas sadismo.
Abro a porta e de imediato ele se coloca ao meu lado. Já conhece minhas artimanhas e eu sei que não vai adiantar tentar sair rápido e deixá-lo trancado do lado de dentro, ou voltar ao quarto e prendê-lo de fora. Lado a lado, dividimos o caminho como siameses, desconfiados um do outro.
Sob protestos, vou e cumpro minha sina junto do meu companheiro não opcional.

Às quintas-feiras é inevitável levar meu mau humor pra passear.

terça-feira, junho 23, 2009









Quem quiser colorir os olhos, apareça!

[ E o Sr. Regis também vai expor. ; ) ]

Realização: Piauí Photo Clube.

domingo, junho 07, 2009

RITO FÚNEBRE [OU EPITÁFIO DESLETRADO AUTOACUSATÓRIO DE UM VERBERRÃO INFAME]





Faleceu na última quinta-feira mais um poeta. Morreu de Verborragia Crônica. As poucas letras dedicadas ao seu epitáfio, publicado quase imperceptivelmente na edição vespertina do periódico de sexta, entre o anúncio de um poodle perdido e um edital para o cargo de coveiro com os dizeres:

“partiu na última quinta-feira Augusto Silvério Cortez, escritor e poeta, editor semestral da coluna de crítica literária do jornal “Há Dias”. Falência múltipla da criatividade agravada por relogismo acentuado. Saudades, amigos, familiares e leitores. A missa se realizará na Catedral de Longa Viagem”

Não que fosse de todo ingrato ou mesmo injusto, mas poderia se dizer exagerado, visto que “poeta” é uma alcunha pomposa em se tratando daquele em particular. Era na verdade um letreólatra costumaz, que era flagrado comumente em ambientes de dignidade duvidosa consumindo verbos antes mesmo das dez da manhã.
Os poucos com quem conversava, menos ainda tinham dele o que falar. Esquecia aniversários, nomes e compromissos. Talvez sua mais memorável característica fosse aquela sua colônia barata, que costumava permanecer nos recintos por horas após sua partida. Diriam em justificativa talvez, que andava em fase sombria de seus dias, dedicando-se cada vez menos às letras suas e progressivamente à esvaziar páginas de outros, sem deixar de ostentar com desdém da alcunha de escritor, enquanto fechava-se na moribunda expressão de sua própria testa, a sinopse de sua vida.
Seu vício já atingira tamanha expressão que misturava sobrenomes, épocas das publicações e títulos das mais distintas e altivas edições em frases sem sentido. Se fazia isso por prazer sádico em causar confusão ou por avançada debilidade mental, nem mesmo o caixão – doado por um benemérito vereador de um partideco da câmara local – saberia responder.
Dada a profunda ausência de pauta e algum assunto de interesse público nesta noite de domingo, nossa coluna resolveu dedicar não só um breve comentário, acima verificado, como formular o não menos infame e absolutamente indigno - porém um tanto mais indicado - epitáfio que se segue:

Dia desses morreu mais um proferidor de impropérios e desinteresses. Partiu só, sem herdeiros, amigos nem obra que mereça citação. Crítico literário, pretenso poeta e medíocre jogador de sinuca. Verbólatra, fumante e torcedor do botafogo. Dada sua desimportância, seu nome será também ignorado. Não sentirão saudades amigos, familiares ou mesmo o periquito mudo que catou no quintal, vitimado pelo último inverno. Não haverá missa de sétimo dia. PS: VENDO CORCEL 73, BOM ESTADO, ÚNICO DONO INTERESSADOS TRATAR 1982-2009

[Qualquer coincidência com nomes e fatos do cotidiano é inteira responsabilidade da vida, a mais sádica espectadora dos dias e infortúnios do mundo]
[Com a devida Venia, dedico este texto ao grande mestre Yosif Landau. Por pura ironia do destino, logo após publicar no meu blog iniciei minha peregrinação de leituras, coincidentemente no blog dele esbarrei em um texto de despedida de sua autoria. Escrevi antes de ler o dele e achei conveniente acrescentar esta pequena dedicatória. ]