quinta-feira, julho 02, 2015

Palito de Picolé

Às vezes escrever é uma libertação, em outras é uma criança gorda e teimosa que se nega a andar. As palavras vão se amontoando na mão, umas em cima das outras, se enfileirando atrapalhadas, se acotovelando confusas e quando me dou conta elas desabam desordenadas e atônitas, e fazem isso se espalhando displicentemente pela minha camisa, pela mesa, em cima do cachorro e até pelo chão, mas nunca no papel. E aí já perdi o texto e estou refletindo sobre como um palito de picolé é uma peça de arremesso triste, mole e úmida depois que o doce gelado vai embora e que essa - a tristeza mole do palito - deve ser a razão de colocarem frases motivacionais nele.

quinta-feira, maio 21, 2015

O vendedor de passagens da rodoviária


Naquela cidade charmosa de gente simpática, aguardo o ônibus das 16:45 na companhia dos Cronópios.
Espero.
Naqueles bancos desconfortáveis de madeira velha e feia, espero.
Rodoviárias são não-lugares de sabor estranho. Sempre sujas, sempre tristonhas. Não possuem aquela atmosfera colorida cheia de eletricidade estática e neon dos aeroportos. Rodoviárias são tristes.
As não-pessoas que lá transitam, existem em chegadas ou partidas, jamais em permanências. Elas não estão.
Observo.
Nesse momento não sou um dos que não está, me favoreço do exercício do olho em que se está e não está, também, mas de uma forma que isso não interfere – ou pelo menos não importa – enquanto meu relógio parece dar menos voltas que a do senhor barbudo com cheiro de capim e cigarro velho sentado do meu lado direito.
Observo.
A senhora enrugada, com seu arranjo de flor amarelo-ontem no cabelo, com aquela expressão triste e nervosa de quem não tem certeza que colocou comida pro gato antes de sair de casa.
A moça de pernas bonitas que está lá ainda menos que os outros – mas ela parece jamais estar mesmo em lugar algum, de qualquer forma – enquanto seus dedos deslizam na tela de cristal luminoso que amarrou seus olhos. A única coisa que faz com que a gente saiba que é um alguém (e não um alguma coisa de pernas bonitas), é o meio sorriso que escorrega no canto esquerdo da boca vez ou outra.
Observo.
O rapaz afoito de unhas bem pintadas e sandálias gastas (controvérsia essa que no mínimo me deixa ainda mais curioso sobre ele), aborda qualquer um que passe no raio de sua mão esticada: “- amigo, você também está procurando carona?”.
As adolescentes de cheiro doce-enjoado, que parecem nunca ter não-estado lá, naquela ânsia juvenil e excitada de quem faz algo que não devia. “Amiga, eu vou. Amiga, não vou. Amiga, eu vou”.
Mas de todas as figuras desse não-lugar estranho, quem me chama mesmo a atenção é o vendedor de passagens. Seus olhos penosos, perdidos, escorrem pra um lado e pro outro em um desespero comedido, tentando não se apegar em nada nem ninguém, como quem há muito parou de lutar contra a correnteza, de tentar se agarrar em algum tronco ou poste, e agora se deixa ir à deriva na enxurrada. Ele é o único ali que não desfruta dessa temporária não-permanência, naquele não-lugar triste que é uma rodoviária. Ele lá está mesmo, todos os dias, conhecendo por três minutos as não-pessoas que existem apenas no espaço de tempo do diálogo: (destino) qual o próximo? - (horários) - quanto? – (valor). Mesmo suas curtas falas são idênticas. Sua sina é repetir o gesto e o verbo na reticência do calendário.  
O vendedor de passagens, esse sujeito que tem o sorriso forçado de atendente de guichê tatuado nas maçãs do rosto, está lá todos os dias e é a única pessoa que está. Testemunha das partidas e chegadas, naquele constante estado de apresentação e despedida. Está só. O outro só existe pra ele até que entregue aquele pedaço de papel ruim em duas vias, com hora de saida e chegada, que rascunha todo o destino do portador enquanto estiver na barriga do ônibus. Tão logo entregue o papel, não lhe existirão mais nem a velha enrugada, nem a moça de pernas bonitas, nem o rapaz afoito, nem as adolescentes de cheiro doce-enjoado (ou mesmo eu que ali apenas observo, mas isso não vem ao caso). Todos terão ido e deixado de existir naquela realidade momentânea. Todos menos ele, que sempre estará lá com seu sorriso forçado e olhos perdidos, em um não-lugar convivendo com não-pessoas.

Como é triste a vida do vendedor de passagens da rodoviária.