sexta-feira, junho 23, 2006

Onironauta



O primeiro sinal foi aquele olhar perdido. Aquela expressão de quem não tem os olhos e a imaginação no mesmo lugar que o resto. Logo que começou a andar veio o segundo sinal: os pés trocados. Vivia aos tropeços e tombos.
Com os anos se acumulando em páginas tortas de um conto estranho, iam aparecendo todas aquelas marcas imaginárias de uma vida entre-mundos. O deleite de perambular entre [ir]realidades enquanto enganava a todos com aquele discurso de racional-cético-normalóide, enquanto se divertia sozinho com as faces chocadas dos normalóides em tempo integral.
Agora que boa parte de seu castelo de sonhos com paredes de guloseimas e jardins de jujubas já estava com a construção bem adiantada, escolhia cuidadosamente cada membro de sua corte. Já tinha sua rainha-fada-interrogasonho-de-bico-inclinado, que solta borboletas histéricas pelo umbigo e rouba sua alma com o olhar; a família real, que possuía superpoderes bem especiais e era dos mais importantes pilares daquele lugar; as músicas para dias de festa; toda a sorte de personagens inventados, fugitivos de seus delírios tortos e finalmente um exército de letras enfileiradas, pra mostrar aos contrassonhosassíduos, raça desprezível e cinza, que o Povo Inclinado ainda Sonha.
E tinha ainda aquela mania boba de transformar Haikais em discursos inflamados...

segunda-feira, junho 19, 2006

Fugas Imaginárias.

Tudo havia sido planejado cuidadosamente: Peguei dois pares de meias, três camisas, duas calças, algumas peças íntimas, os sonhos amarelados da infância, os desejos reprimidos da adolescência e os medos de uma vida inteira. Catei tudo e metodicamente guardei na velha mochila verde.
A parte mais difícil era guardar o segredo. Tudo devia ser executado como uma pequena conspiração.
Há muito tempo sentia como um escravo, vivia mergulhado naquele banzo interminável.
Esperei vir a noite escura, quando as estrelas ficam menos tímidas, para executar aquele ato libertador. Quando meu captor adormeceu naquele leito com cheiro de ontens, saí da cama pé-ante-pé, calcei meu all star velho, tirei a bolsa de subversões escondidas e abri a janela devagar. Tudo no mais perfeito silencio.
Coloquei o primeiro pé do lado de fora e lembrei de tudo que deixaria para trás: os doces de tia Teresa, os afagos da mãe carinhosa e toda sorte de criaturas fantásticas fugidas da cabeça. Coloquei o segundo pé do lado de fora e olhei pela janela uma vez mais. Ele ainda estava ali deitado adormecido como um velho mapa, cheio de caminhos a percorrer mas sem pés andantes, enquanto eu preparava toda aquela fuga imaginária. Desde que ele decidiu não mais sonhar, decidi que precisava ir embora.
Foi assim que aconteceu no dia em que Eu resolvi fugir de Mim.

terça-feira, junho 06, 2006

Um estranho no banheiro

A primeira vez que o vi foi em uma manhã de terça-feira. Eu enrolado em uma toalha, o rosto coberto de espuma. Foi no meio da trajetória, enquanto deslizava a lâmina naquele ato subversivo, quando pele e aço se unem para arrancar do semblante parte dos anos e histórias que se acumulam em forma de pêlo. Foi ali, num dos mais íntimos atos da vida de um homem, que notei sua presença. Parecia ter tomado consciência de mim ao mesmo tempo que eu dele. Ficamos lá, nos encarando, franzindo a testa e percorrendo o corpo um do outro com os olhos.
Não sei o que me perturbava mais, o fato de ter um homem semi-nu no meu banheiro, ou aquele estranho ter algo sublinearmente familiar, ainda que distante.
Sua feição se contraía. Talvez a mesma sensação de familiaridade e estranheza casadas passasse na sua cabeça.
Ficamos lá parados, barbeadores à mão. Uma espécie de duelo silencioso, como dois samurais empunhando suas lâminas travando um combate de espírito através dos olhos. Ninguém cederia.
Toquei meu rosto com uma das mãos e ele correspondeu de forma simétrica. Aproximamos os rostos e avaliamos as linhas que marcavam nossas vidas, desenhadas em traços incertos. Eu analisava com uma estranha curiosidade aquelas marcas em sua testa, entre seus olhos e nas maçãs do rosto. Marcas de noites mal-dormidas, dias estressantes e sorrisos de momentos agradáveis. Eram marcas suaves ainda, mas que com o tempo ganhariam mais destaque, dependendo das escolhas e dos fatos da vida de cada um. Havia algo naqueles olhos negros, uma espécie de brilho infantil escondido atrás de um olhar carregado de responsabilidades e uma agenda lotada. Era como um feriado bom que fica na memória e quando o sorriso de um dia feliz se manifesta, ele desliza para ver o sol. Ele parecia ver também no fundo dos meus algo intrigante.
Milhares de coisas passavam na minha cabeça naquele instante, naquela eternidade contida em segundos de tempo parado. Observava as linhas em seu rosto e me perguntava o que teria sido da vida daquele estranho. Como seria sua rotina de trabalho, sua vida social, seus amores, suas vitórias, decepções... Tudo estava escrito ali, naquele estranho rosto familiar.
Por duas ou três vezes simultaneamente ensaiamos dizer algo um ao outro. Erguemos a mão entreabindo a boca e iniciamos, obedecendo à regra das boas maneiras, cedemos a iniciativa. Cedemos e silenciamos. Ambos demos um sorriso. O que mais se fazer em tão incomum situação?
O rádio voltou a tocar, o relógio antes parado observando tudo que se desenrolava voltou a correr. Dizem que o tempo é o voyer por excelência. Tentei ignorar tudo que se passava e voltei a me barbear. Ele decidiu fazer o mesmo.
Ficamos lá eu e aquele estranho no meu banheiro, tentando tocar a vida. Quem sabe um dia eu descubra quem é aquele que de uma hora pra outra resolveu morar no meu reflexo e dividir comigo minha sombra. Quantas vezes ainda teria aquele diálogo silencioso diante do espelho com esse estranho no banheiro, até descobrir ao menos o seu nome?
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Estranhos no espelho andam povoando o mundo inclinado.
Não é novidade, mas anda tudo corrido.
Eu ainda arranjo um jeito de me clonar pra poder dar conta de tudo.
[ps:Eu vou bolar o ensaio, prometo. E vai ser muito mais colorido. Amo]
[www.fotolog.com/cafeinaman]