sábado, dezembro 05, 2009

ALMA DE CEGO NÃO DERRETE

Trabalhava diariamente na calçada de uma sapataria. Sentado sobre as pernas e restos de uma caixa de geladeira. Erguia a bacia suja e desbotada quando ouvia passos em sua direção. Recebia com um sorriso de dentes gastos e agradecia com um “deus-lhe-abençoe” a um trocado qualquer que lhe deixassem.

As cores do mundo o abandonaram em uma desilusão amorosa de fim de semana. Um desalento daqueles que arranca um naco da alma e desafina os verbos. Moço, inconseqüente, jovem e apaixonado, terminara por desistir de ver o mundo e seus tons e semi-tons. Descobrira que a liquidez da alma se dava pelo encanto que entrava pelas suas janelas. Sem hesitação foi à cozinha e com uma colher de sopa arrancou fora os olhos e os atirou janela a fora. Trocou as luzes por um par de olhos vítreos e opacos.

Anos mais tarde e muitos tombos depois, conhecia os caminhos com os dedos. Na ponta de seu toque estavam os mapas de todos os lugares por onde seus pés o haviam conduzido. Quem vive no escuro aprende esbarrando e caindo pelo caminho. Nessas andanças esquecera também o sabor do doce já que é nas cores que moram o açúcar dos dias saudáveis.

Vivia a deslizar pelas calçadas e vez ou outra um banco de praça para um sono breve e sem sonhos. Um intervalo de escuridão desperta e outro adormecido. Um dia em sua mendicância ouviu um tilintar diferente em sua bacia. Com dedos sujos e longas e amarelas unhas, remexeu e misturado às moedas encontrou uma esfera estranha e coberta por um pó grosso. Seus dedos conheciam aquilo, mas sua memória o traía. Tateou, circulou, cheirou... nada. Por fim resolveu levar à boca, na esperança de que sua língua dormente pusesse fim ao seu tormento de cego. Hesitou por um instante... a vida às escuras o havia feito um tanto inconseqüente, mas sempre havia a segurança em braile a lhe resguardar. Dessa vez era pura ousadia e risco. Respirou fundo. Nada tinha a perder. Colocou na boca e depois de passear com a língua em volta deu uma mordida forte.

Por um instante sentiu a língua formigar e o ar lhe escapar pelas narinas. Antes que pudesse racionalizar o que se passava, um gosto se formou em suas papilas. Era doce. Fora traído por sua própria cegueira e terminara por levar à boca uma jujuba. Sequer podia praguejar, pois no céu de sua boca já brotavam estrelas e em seus olhos vazios uma coceira desesperada. Sentia um calor crescendo em seu interior à medida que seu corpo amolecia. Podia ouvir o próprio coração acelerando. Batia como tambores tribais, cada vez mais alto. Sentia a alma liquefazendo-se, como uma vela de natal derretendo em puro inverno. Por um instante não conseguiu mais coçar os olhos e um clarão irrompeu deles. Brilhavam forte, transparecendo as vidraças opacas das janelas de sua alma. A luz ganhou espectros e se lançou ao céu em 7 raios coloridos.

Seu corpo desprendia-se como uma casca vazia à medida que sua alma escorria pelos olhos em um arco-íris radiante, até que não passava mais de um conjunto de mulambos sujos e rotos na calçada enquanto ele mesmo, doce e colorido, jogado ao céu sem fim. Não era dia de chuva mas toda a cidade viu o arco íris.

De um outro canto qualquer, um garoto pensava nas historias que ouvia sobre aquilo. Mal sabia o quanto enganam-se em dizer que no fim do arco Iris há um pote de ouro. No início dele há uma bacia de trocados largados e seu fim se perde entre as nuvens, onde o céu nunca é o bastante e toda alma é líquida e doce.

[vejam também www.flickr.com/photos/rfalcao]

6 comentários:

myra disse...

fui no facebook, e vi tuas fotos!!! adorei!
e este texto, tambem!!!
um bom domingo para voce, e um abraço,

Nathy disse...

Como sempre um texto fantástico e deliciosamente gostoso de ler, sentir e ver.

myra disse...

nao posso deixar de vir aqui ver si tem algo novo,gosto tanto como escreve!!!
beijos

Aninha disse...

Menino, se eu não soubesse que foi tu que escreveu, com certeza advinharia depois de ver que a solução para a cura da alma é uma jujuba, rsrsrsrs... aí não tinha mais como tu se esconder. Xêro enorme!!!

Lou Witt disse...

Que remédio para a alma ler-te e encontrar em tuas palavras o doce de uma jujuba!!!

Beijo de saudade!!!

myra disse...

aqui estou para te ver...e te desejar um FELIZ muito feliz ano 2010, beijos