terça-feira, dezembro 30, 2008

COTTON CLUB




Nas terças-feiras sentava ao fundo de um bar, rodeado daquele cheiro ocre de cerveja velha e fumaça adormecida. Cheiro de suor de ontem e beijos de amanhã, carregados nos olhares que se cruzam no balcão em um flerte embriagado.
Costumava sentar e observar tudo. Era quase como uma fotografia empoeirada na parede, cujos olhos ninguém saberia dizer ao certo para onde apontavam. Era tão ali, empoleirado em seus próprios pensamentos, que passava despercebido aos outros. Era como ninguém, nada. Era tal qual a fumaça azulada de seu cigarro: uma presença ignorada, traída apenas pelo seu cheiro.
Observava com olhos de esfinge, em uma expressão inexata, imprecisa. Era ao mesmo tempo um espelho que refletia um olhar qualquer que o encontrasse; bem como uma máscara de si mesmo. Fosse de carnaval, de um baile à moda antiga, de ritualística sagrada ou forjada pela dureza de seus próprios ontens.
Outro gole. A bebida lhe queimava a garganta. Era como as palavras que nunca dissera. Aquelas longas conversas que tinha com ele mesmo em diálogos imaginários que sempre terminavam em choro de uma parte de si. Senão em tragédia, em homicídio selvagem. O assassino de si, condenado a carregar seu próprio corpo sobre o ombro, sendo por vezes seu alter ego o cadáver das escolhas, levado com esforço; por vezes os seus anseios e paixões mais doces. Era seu carrasco e também sua vítima. Por isso bebia. Tinha de sentir que ainda controlava algo.
Mas às vezes apenas observava os outros. Ria-se por dentro da comédia da vida alheia. Não queria saber seus nomes, seus endereços e muito menos aonde iriam depois do bar. Queria apenas olhar. Ler seus passos e tentar adivinhar o que viria a seguir, dentro daquele instante de validade limitada à quatro paredes.
Via através do copo, tal qual uma lente de aumento. Entre as gotas suadas do copo e o malte barato que suas posses podiam pagar. In vino veritas.ou In whisky,que seja. O álcool revelava-lhe os indivíduos de forma clara. Ou talvez apenas inebriasse sua mente de uma forma criativa.
Já estivera tantas vezes ali, sentado naquela mesa no fim do mundo, esquecido de si. Perdido de si. Nunca estivera mais em si... e assim jogado, largado à própria miséria naquela espelunca, sentia-se um pouco mais importante. Um pouco mais centrado, ainda que seu corpo nunca encontrasse equilíbrio para cruzar as oito quadras que o separavam de sua casa sem se ferir.
Olhava mais uma vez em volta. Escrevia em sua memória cada um dos personagens sem nome e sem rosto daquela noite. Não importava. Amanhã nada lembraria. Pagava a conta com três notas amassadas. Receberia moedas em troco. Odiava moedas, aquelas pequenas coisas sujas e quase sem valor, condenadas a viver perdidas entre bolsos e latas de pedintes.
Seguiria naqueles trôpegos passos de bêbado, tão incertos quanto sua mente, sentindo o mundo girar à sua volta - isso lhe causava uma agradável sensação egocêntrica. Depois de lutar contra seus próprios pés e a fechadura, cairia profundamente em sua cama. Entregue ao delírio ébrio, ao sono perturbado.
Outra vez acordaria e ainda seria um reflexo de sim mesmo, e agora com ressaca de sua própria vida.

9 comentários:

Anônimo disse...

Régis, outro textaço esse que escreveu, que 2009 seja de muitas páginas preenchidas e boas letras, pra gente, velho!
Abração e um excelente 2009!

Anônimo disse...

Muito bom ter paixões doces. Daquelas que tiram nosso sossego, controle. Nos abalam por completo. Seca a garganta. Bagunça os conceitos. Desarruma tudo. Ao som de Cotton Club um lindo 2009. Continue a escrever, pois tem muita gente que não perde nenhuma de suas letras.
A vida é engraçada. Ordinária às vezes.

Feliz 2009...

Srta. Coisa disse...

eiii menino! que saudades! esqueceu de mim :(... rs
que suas desconstruções permaneçam construindo sonhos, devaneios e (i)realidades...
beijo grande

Anônimo disse...

Belo, melancólico, ácido, poético. Em parte espelho desta que lê. :)
Abraços,

Silvano Neto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Silvano Neto disse...

e ai meu fiu! to passando para deixar um abraço e pedindo para vc mudar aquele meu link do blog antigo para o novo - http://wowhamburger.blogspot.com/ ou para o http://silvanoshield.blogspot.com/- vlw meu amigo... o PV ja fez a cirurgia né? t+

Anônimo disse...

Feliz ano novo pra vc tb! Muitas idéias boas pra rechear seu blog! Beijo!

Milene disse...

"Sentado ao fundo de um bar estava."
A descobrir a si mesmo, os conhecidos-desconhecidos. os sem-nome , os sem-gostos...
Fotografando gestos, palavras, doses...
com gosto-acre-doce da pequenas descobertas!

Adorei suas palavras!
Tão bem costuradas e tão desalinhadas!

myra disse...

como gosto deste teu blog! e de tudo que escreve tao bem...
saudades,
myra