domingo, junho 07, 2009

RITO FÚNEBRE [OU EPITÁFIO DESLETRADO AUTOACUSATÓRIO DE UM VERBERRÃO INFAME]





Faleceu na última quinta-feira mais um poeta. Morreu de Verborragia Crônica. As poucas letras dedicadas ao seu epitáfio, publicado quase imperceptivelmente na edição vespertina do periódico de sexta, entre o anúncio de um poodle perdido e um edital para o cargo de coveiro com os dizeres:

“partiu na última quinta-feira Augusto Silvério Cortez, escritor e poeta, editor semestral da coluna de crítica literária do jornal “Há Dias”. Falência múltipla da criatividade agravada por relogismo acentuado. Saudades, amigos, familiares e leitores. A missa se realizará na Catedral de Longa Viagem”

Não que fosse de todo ingrato ou mesmo injusto, mas poderia se dizer exagerado, visto que “poeta” é uma alcunha pomposa em se tratando daquele em particular. Era na verdade um letreólatra costumaz, que era flagrado comumente em ambientes de dignidade duvidosa consumindo verbos antes mesmo das dez da manhã.
Os poucos com quem conversava, menos ainda tinham dele o que falar. Esquecia aniversários, nomes e compromissos. Talvez sua mais memorável característica fosse aquela sua colônia barata, que costumava permanecer nos recintos por horas após sua partida. Diriam em justificativa talvez, que andava em fase sombria de seus dias, dedicando-se cada vez menos às letras suas e progressivamente à esvaziar páginas de outros, sem deixar de ostentar com desdém da alcunha de escritor, enquanto fechava-se na moribunda expressão de sua própria testa, a sinopse de sua vida.
Seu vício já atingira tamanha expressão que misturava sobrenomes, épocas das publicações e títulos das mais distintas e altivas edições em frases sem sentido. Se fazia isso por prazer sádico em causar confusão ou por avançada debilidade mental, nem mesmo o caixão – doado por um benemérito vereador de um partideco da câmara local – saberia responder.
Dada a profunda ausência de pauta e algum assunto de interesse público nesta noite de domingo, nossa coluna resolveu dedicar não só um breve comentário, acima verificado, como formular o não menos infame e absolutamente indigno - porém um tanto mais indicado - epitáfio que se segue:

Dia desses morreu mais um proferidor de impropérios e desinteresses. Partiu só, sem herdeiros, amigos nem obra que mereça citação. Crítico literário, pretenso poeta e medíocre jogador de sinuca. Verbólatra, fumante e torcedor do botafogo. Dada sua desimportância, seu nome será também ignorado. Não sentirão saudades amigos, familiares ou mesmo o periquito mudo que catou no quintal, vitimado pelo último inverno. Não haverá missa de sétimo dia. PS: VENDO CORCEL 73, BOM ESTADO, ÚNICO DONO INTERESSADOS TRATAR 1982-2009

[Qualquer coincidência com nomes e fatos do cotidiano é inteira responsabilidade da vida, a mais sádica espectadora dos dias e infortúnios do mundo]
[Com a devida Venia, dedico este texto ao grande mestre Yosif Landau. Por pura ironia do destino, logo após publicar no meu blog iniciei minha peregrinação de leituras, coincidentemente no blog dele esbarrei em um texto de despedida de sua autoria. Escrevi antes de ler o dele e achei conveniente acrescentar esta pequena dedicatória. ]

8 comentários:

Nathy disse...

Poetas não morrem, pois suas palavras são eternas.

myra disse...

meu querido Regis , finalmente encontrei, e acho que vc. deveria insistir com meu irmao,ele tem que continuar a escrever!!um grande beijo,
myra

Yehuda iosif landau disse...

amigo sumido, reencontrado, como é bom ler carinho e amizade e ligeiros exageros nas quelidades,as coinncidências nas quais não acredito, de tento lembrar - me da sua ausência, a dita acontece.
Uma grande abraço e reaparecemes fraternos

Lorenna Batista disse...

Lindo texto como sempre, adoro essa sua alma de artista!!

Lorenna Batista disse...

fiz uma homenagem no meu log pra ti mas faz o favor de olhar senão fico de mal :(

F. Reoli disse...

Todos nós morremos e matamos um pouco de palavras todos os dias... e a homenagem pro Yehuda é merecidíssima, um cara que aprendi a não só ler: admirar!
Abração amigo escriba!

Beta disse...

Pois a insignificância desse pretenso poeta me emocionou, insignificante que sou também. Bom demais o texto! Sua prosa é lírica e elegante. Eu, que consumo verbos antes mesmo das dez da manhã, senti cada dor que resultou em poesia, ironia, abraço, solidão. A verborragia me contaminou e por isso esse comentário será imenso. Senti doer e rir as saudades, os amigos, as ausências, o esvaziar de cada página, os vícios. Até a noite de domingo me veio, o pesadelo de domingo. Há sensação pior que a sentida numa noite de domingo? Mas o poeta não morre não, concordo com a Nathy. :)
E assim, meio atabalhoada, repentinamente eu me despeço.
Beijão.

Dreamer disse...

Nathy: As palavras tem vida própria. Os poetas sao apenas as portas ;)

Myra: COncordo em gênero, número e grau!! ainda bem que ele já aposentou essa aposentadoria.

Iosif: Aos mestres, sempre!

Reoli: Abraço, irmao de letras.


Lorenna: Ameeei, mãe! mesmo mesmo. E foi golpe baixo!

Beta:As letras são o carinho da imaginação e também o açoite. Existe no mundo criatura que sente mais que o poeta, seja qual sorte de angústia ou delírio? duvido! ;)

Obrigado pelso comentários. Vocês são a alegria desta casa ;)