quarta-feira, abril 21, 2010

Dr. MORTE



[Imagem retirada da internet]

Vivia da morte alheia. Simples assim. Seu ganha-pão era baseado na arte de coser, reestruturar, forrar e maquiar defuntos. Quanto mais trágica, mutilante e violenta, maior o benefício de seus bolsos. Não que fosse um explorador, longe disso, mas sua arte não era barata.

Algodão silvestre, papel francês da gramatura ideal e serragem de pinho virgem para o recheio. Base, sombra, blush e delineador importados para a cobertura. Nenhuma mulher era tão caprichosa e detalhista no uso dos cosméticos quanto ele.

O fato é que sentia prazer naquilo. Gostava de se debruçar sobre corpos rasgados e feridos, despidos de suas vestes e pudores. Sobre sua mesa metálica e fria todos os orgulhos se esvaem.

Quando seu pincel-navalha trabalhava nacos de carne, sentia uma satisfação de escultor grego, de pintor europeu. Imaginava-se um Rembrandt, um Da Vinci, um Michellangelo em uma versão necrótica, retratando uma lembrança residual qualquer de vida em um pedaço morto que um dia teve um nome. Sim, já teve. Pra ele era um cliente, não o Sr. Antonio, o Sr. João, Dona Tereza. Não podia se dar ao luxo do apego e chamá-los pelo nome. Preferia pensá-los como uma obra encomendada de sua galeria sóbria e seu trabalho uma vernissage incomum. Trabalhava-os como um bloco de mármore cuja beleza aguarda a carícia do cinzel e do martelo para vir à tona.

O que a maioria das pessoas não entendia era que seu trabalho não consistia apenas de vender o corpo reformado de alguém, mas também uma lembrança. Uma memória de suas feições em vida. Sua satisfação vinha dos olhos chorosos que inclinavam-se sobre os caixões sem partilhar do horror da morte barulhenta e suja. O resultado de sua arte era um suave aroma amadeirado e uma pele com os tons de um sono da tarde.

Era assim que ganhava a vida e aproveitava seus dias. "Carpe Diem. Carpe Mortem". Um “amigo” que visita quando um amado se vai. Um tanto alfaiate, artista e açougueiro, trajando ternos bem passados, esguio como um lamento, como sorriso escondido por uma volumosa e bem cuidada barba negra e um frio aperto de mão. Sua presença era precedida sempre pelas batidas de seus sapatos de sola de madeira e pelo cheiro estranhamente agradável de morte e hortelã.

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[Na foto acima, de autoria desconhecida, Gunther Von Hagens, criador da Body Worlds, exposição de arte cujo objeto são corpos humanos plastificados e também é chamado de Dr. Morte. Ele não foi o que me inspirou pra escrever o texto acima, apenas achei conveniente constar essa informação]




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5 comentários:

myra disse...

obrigada por vindo me ver, li seus textos, os dois primeiros, voce escreve muito bem, mas é pessimista demais, tenho muuuuuuuuuitos anos, tive tragedias,e dificuldades tambem.. e etc, na minha vida, mas devo reconhecer que se pudesse gostaria de ter mais uma vida...
abraço,

Aninha disse...

Minha gente...

Nathy disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nathy disse...

Como sempre um texto lindo de se ver, sentir e ler.

O menino poeta que gostava de leis e de coisa antigas agora está onde sempre deveria estar. No meio das letras, as vírgulas, reticências...contando histórias da vida.

Beijo proce, se cuida.

Jeferson Cardoso disse...

Texto sinistro, muito bem escrito.
Aproveito a sorte de estar aqui em seu blog e lhe convido para opinar em meu trabalho que já dura quase três meses (O Diário de Bronson).

Abraço do Jefhcardoso do http://jefhcardoso.blogspot.com